quarta-feira, 26 de maio de 2010

Eles chegam sempre assim


Ao chegar para o expediente hoje minha atenção foi despertada pela beleza dos hibiscos da entrada principal. Estas flores reagem muito bem aos raios do sol, principalmente no período da manhã quando esbanjam cores.
Por vezes, da janela da sala, observo nossos alunos parando para um clic com as máquinas fotográficas ou celulares multifuncionais e depois compartilham estas imagens com amigos ou familiares.
Mas a melhor imagem do dia é esta que lhes envio.
O ônibus encostou na portaria principal e um burburinho alegre se misturou aos sons da natureza. Era a moçada da APAE, chegando para mais um dia de aula nos laboratórios da Fundação Eurípides – Univem, no programa de inclusão digital que vem apresentando excelentes resultados.
Risos, olhares, alegria contagiante e o prazer de mais um dia de aula. Assim começou nossa quarta-feira.

Ivan Evangelista Jr

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Uma venda de tudo


(Publicado na Folha de São Paulo, edição 20/05/2010)

Impulsivo nas compras? Não vá ao Lá da Venda. Não vá. Tudo o que você viu naquela cidadezinha de interior está lá
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CONHECI HELOÍSA Bacellar há um bom tempo. Fui à casa dela para um concurso de receitas de fim de ano, nos divertimos à grande na sua cozinha maravilhosa, cheia de todos os badulaques próprios ao métier de cozinheira, advogada, professora de culinária, escritora de livros de cozinha e artesã.
Um azougue, a criatura.
Um dia eu soube que abrira uma venda. Os muito moços, mocíssimos, não sabem o que é uma venda.
"Vai lá na venda, menina, e compra uma lata de óleo na caderneta!"
"Mãe, ganhei uma moeda, posso ir na venda comprar bala de goma e marcar na caderneta?"
Uma empregada levava meu irmão no carrinho e eu de mãos dadas para o parque Trianon. Na volta, passava na venda do seu Manuel e pedia cachaça.
Deixava cair no chão uns pingos para o santo, perguntava se eu queria experimentar e glupt, com um movimento rápido da cabeça para trás, entornava o copinho.
Entenderam o que é uma venda?
Um espaço onde se vende de secos e molhados a brinquedinhos para crianças, bonecas de pano, agulhas, dedais, picolés e pés de moleque. De tudo um pouco, conforme a cabeça do dono, geralmente português.
Na venda do seu Salvador, tinha saco de arroz, em que a gente enfiava a mão até o fundo e sentia um friozinho, bacalhau dependurado na porta e aquelas garrafinhas de chocolate embrulhadas em papel brilhante e colorido com licor dentro.
Pois, então, a Heloísa abriu sua própria venda. Restaurante-venda.
Cheguei lá com fome, ah, não é venda, nada, é estilizada, clara, luminosa, passei reto por um balcão de doces e salgados. Vi bolos e uns sonhos gordos e recheados de creme amarelinho.
O restaurante é o pequeno quintal da casa. Nos muros, dependuradas, latas de óleo, principalmente, com plantinhas caipiras.
Nunca se pode falar da comida se se vai ao lugar uma vez só, mas isso é regra para crítico de comida, que eu não sou. E, além disso, acho que vou comer lá todo dia, porque é comida caseira e gostosa e perto da minha casa. E, principalmente, é quente.
Num dia gelado, a comida estava quente, pelando, queimando a língua. Como não me acontece há muito tempo de queimar a língua com comida quente, fiquei encantada.
Pedi uma carne ensopada, macia, com um bom caldo grosso, que veio acompanhada de arroz, uma salada vistosa e umas tiras de batata-doce.
Finíssimas, fritas. Huuum, delícia.
Almocei bem, minha amiga comeu camarão com chuchu e teríamos mais umas três opções, mais ou menos, na mesma linha.
Mas todo o juízo que você exerceu na escolha do prato voa pela janela quando você volta pelo caminho da venda. Impulsivo nas compras? Não vá ao Lá da Venda. Não vá.
Tudo o que você viu naquela cidadezinha de interior onde passava as férias está lá. Tudo.
Comprei agulhas de fundo largo, xicarazinhas de café de ágata. Bule de café branco, caipira, frigideiras de ferro, bolas de gude, cumbucas, echarpe de pescoço, pó de arroz Lady, goiabada cascão de gavetinha, balas de coco com coco fresco.
Minha amiga saiu com uma cesta de piquenique de palha com dobradiças para abrir ora de um lado, ora de outro. Panos de prato, toalhas bordadas em ponto de haste e uma chaleira de desenho bonito.
Deixei por lá vasos de vidro, lindíssimos, bons para dar de casamento a quem entende-vidro pode ser tão bonito quanto cristal- e alguns livrinhos de cordel. E essência de baunilha orgânica e cheirosa, doces de pêssego em calda.
Pedi farinha e não tinha. (Confundi tudo, achei que estava no seu Salvador.) Mas a moça que me atendia foi delicada. "Ainda não temos", disse ela, frisando o "ainda".
Como se fosse uma grande ideia a se pensar...

ninahorta@uol.com.br

(leia abaixo minha resposta enviada para Nina Horta)
Foi mágico. Voltei no tempo num estalar de dedos assim que mentalizei o "enfiar a mão no saco de arroz e sentir o friozinho".
Quem não fez isso na infância perdeu uma das boas coisas da vida.
Mas ao fechar os olhos e voltar na venda do japonês, pois aqui no interior eram eles os proprietários na maioria, eu me lembrei do litro tampado com sabugo de milho que a mãe dava na mão e pedia para buscar um litro de óleo de cozinha. Quando lembrava de pegar o embornal, era mais fácil, não tinha risco de escapar da mão o gargalo lambuzado com o excesso. Quando acontecia eu custava a chegar em casa porque entrava no chinelo na certa.
Mas lembrei também da banha, comprada de quilo e embrulhada num papel diferente do de pão, sim , porque naquele tempo o pão era embrulhado e não ensacado ou ensacolado, como hoje. O cheiro da venda se confundia entre a caixa de bacalhau, que ficava aberta na porta, tomando sol, a lata grande aberta, de sardinhas salgadas que ficava sobre o balcão bem pertinho do caixa e o de sabão de soda, com os pedaços postos sobre uma tábua de madeira num canto qualquer.
Vez em quando, com sorte, um daqueles senhores que bebiam uma branquinha temperada (cachaça com carqueja) antes da janta, servia uma fatia de mortadela, muito cheirosa, que enchia a mão e corria goela abaixo como um manjar dos deuses. Quando isto acontecia, a semana tava ganha.
Pendurados em varais improvisados, de bambu, cabos de vassoura ou mesmo de barbante, vassouras caipiras ou de piaçava, grandes bonecas de plástico, com vestidos curtos e unhas pintadas de vermelho olhavam os transeuntes, os torradores de café, as bombas Fritz (flit) de passar veneno para matar pernilongos e os pacotes de biscoitos que davam dor no pescoço de tanto que a gente cobiçava olhando para cima.
Ah sim, tinha ainda um rolo de fumo, enorme, cortado na faca fina e afiada como gilete, embrulhado depois no papel rosa e posto no bolso de traz da calça. Comprei um punhado deles para o meu tio certa vez, fui cheirando o embrulho até em casa e, quando cheguei, fui direto para o quintal soltar as tripas pela boca tamanha era a fortidão.
A tia Nica misturava o fumo urina numa lata de marmelada vazia, deixava descansar por uns dias e depois ia para o vidro. O caldo grosso era usado como remédio para corte no pé, pisada em prego, para furúnculo ou ferida braba.

Nina, coisa boa, voltei na venda com você. Mas conta um dia sobre o toco do açougue também.

Ivan Evangelista Jr
Marília - SP