domingo, 17 de julho de 2011

Memoria olfativa

Já declarei que sou fã de carteirinha da Nina Horta, escreve sobre culinária na Folha, sempre nas quintas-feiras.

Além de boa cozinheira e dona de Buffet, ela tem o dom da escrita e do resgate de algumas passagens que ficaram ao longo da história de quase todos nós. Fazendo um parêntese nesta historia toda, outro dia eu conversava com a Tia Rosalina Tanuri, professora e historiadora de Marília, minha colega da Comissão de Registros Históricos, sobre ela escrever um artigo que falasse sobre os cheiros que são parte da nossa memória e que vez ou outra surgem, impulsionados por um fato, por uma fala ou mesmo por uma foto.
Na brincadeira da conversa fomos resgatando aleatoriamente: o cheiro do Matarazzo, cheiro de amendoim torrado e depois cozido na soda para fazer sabão e o cheiro da margarina, depois veio o cheiro de sardinha fresca na feira de domingo, era quase meio quarteirão de bancas vendendo peixe e jogando água e mais água para tirar as escamas e a barrigada impregnada no asfalto, tinha também o cheiro do bueiro da indústria Macul,onde a água quente escoada pela caldeira corria livre na sarjeta da rua São Luiz, um cheiro misto de algodão cru com soda, e tem também o cheiro do trem, passando pelo centro da cidade, carregado de bois vindos lá dos pastos do Mato Grosso. O comboio tinha que fazer parada para as trocas de trilhos e manobras e o tal cheiro de boi ficava no ar por horas a fio.
Quem andou pela FEPASA ainda tem o “cheiro de trem” nas narinas, um misto de graxa com ferro oxidado que dava enjôo até em envelope de sal de frutas. Para contrabalançar, cheiro de bala Sete Belo, lá da chaminé da indústria Ailiram, e também o cheiro da cocada preta, este da fábrica de doces São José que ficava na rua Vinte e Quatro de Dezembro. Mas a gente teve que agüentar por muito tempo também o cheiro do curtume do Ferreirinha, cheiro de couro de boi, misturado com sebo e gordura, mais forte que o cheiro do córrego do Pombo que até hoje leva o esgoto da cidade para os campos, onde o café maduro, colhido e jogado no terreiro, seca ao sol quente do meio dia.
Lá de casa e da infância, guardo ainda o cheiro dos bolos de noiva que a mãe fazia sob encomenda, das balas de coco, puxadas na mão e cortadas na tesoura, ainda quentes para não perder o ponto, da calda de abacaxi, batizada com vinho ou Martini, para rechear os bolos, da calda de chocolate de cobertura e do forno já morno na madrugada.
Só quem sentiu e comeu sabe o cheiro bom de bife feito sobre a chapa do fogão de lenha, enquanto a dobradinha cozinhava na última boca do fogão para não pegar muita caloria, coisa de dia e meio para ficar pronta, cheiro de guarda-roupas velho e empoeirado, lá no quartinho dos fundos, cheiro de uvas frescas penduradas nas parreiras, esperando o tempo certo da colheita e, para não ir muito mais adiante, cheiro de terra fresca molhada de canteiros de couve, almeirão, alface e de temperos, sempre regados no final da tarde, que dava a introdução para o cheiro da sopa quente no fogão a lenha.
Ainda ontem, depois de regar as plantas do quintal para tentar vencer um pouco a secura que toma conta do cenário, sentei-me próximo do pé de galego que está carregada de flor e fiquei ali enchendo os pulmões de um aroma sem igual.
E eu só me lembrei disso tudo porque visitei o blog da Nina Horta (http://ninahorta.folha.blog.uol.com.br/) e encontrei este belo texto:

Dificuldades inerentes a uma receita.

Passei o sábado e o domingo traduzindo um artigo sobre crítica gastronômica para fazer meu post. Pois quando fui passar para o blog, perdi. Já fiz tudo para achar e sumiu de vez. Mas... na próxima semana prometo traduzir o mesmo de novo ou conseguir coisa melhor. Bandido. Acho que foi praga de todos os críticos gastronômicos ao mesmo tempo.

Fiquem então com a receita de pato com laranjinhas da China, um artigo sobre as dificuldades inerentes a uma receita.
De vez em quando uma produtora de revista pede um cardápio para fotos. Vou protelando porque sei a trabalheira, correrias escada acima e escada abaixo, passar shoyu no pato para dourar, trocar a fatia de chocolate que suou, retirar o sorvete que derreteu.
- A luz está boa, sobe aqui neste banquinho para ver- diz o fotógrafo, e o pato que você fez está lá, longe, muito pequeno e de cabeça para baixo.
- Uhm...- resmunga a cozinheira.
Mas o fim não está próximo. Agora é preciso mandar por fax as receitas pormenorizadas, tintim por tintim.
- Não dá para dizer pegue o pato, lave o pato, asse o pato?- faço-me de inocente.
E o pior é que sei, no fundo do coração eu sei, que a única receita é esta de pegue o pato, lave o pato... Quem precisa obedecer, como você e eu, às colherinhas, gotas, salpicos, nunca encontrará a essência do pato, que ora é um ora é outro, nunca o mesmo no tempo e no espaço, nem ele nem seus ingredientes, nem nós, nem nada.
"Aburrida" pela pressão da produtora, vem a grande tentação da receita de um pato feito de impressões, de vivência do corpo, de artifícios da memória. Temos que entregar a receita ao nariz e à boca, introjetar o pato, resolvê-lo sensorialmente e só depois levá-lo direto à panela.
- Pegue um ramo de cheiros: de preferência catados na infância urbana cheia de lotes vazios com terra esburacada e esturricada, montes de areia, pedaços de tijolos quebrados, pés de mamona de folhas largas, cachimbinhos feitos do caule, um primeiro gosto de perigo, pois o lote era vazio e a mamona venenosa.
Cheiros bem perto do corpo, de algodão Bangu, rascante e permanente Toni.
Cheiro de rádio estalando, roupa limpa recém-lavada, e a empregada passando enquanto escutava a novelinha de Sarita Campos. E lá pelas cinco ou seis horas era só um cheiro de selva com o grito retumbante de Tarzan chamando as Janes em flor.
A vizinha apelidada de Natália, a italianinha, recheava o pão com azeite e alho, d. Hermínia fritava alcachofras, Judith fazia gefilte fish, Rutênio era aviador e trazia Coca-Cola com gosto de sabão Aristolino, e dos sobrados saía um cheiro de carne assada de panela.
Não faltava uma poeira quente de sol, o jogo suado de amarelinha, cheiro de borracha de pneu de bicicleta, da sua bicicleta azul, alumínio quente roçando as coxas e patins riscando o cimento áspero e afundando levemente o piche do asfalto.
Cheiro do primeiro livro-presente no bolso do pai, de couro azul-marinho, trabalhado em escamas. O melhor cheiro do mundo, o decisivo, em contraposição ao pior cheiro do mundo, um cocô de gato de estimação, perdido embaixo de um armário decisivo também para o sumiço do gato.
A mãe não tinha cheiro, não suava e usava Bois Dormant. O pai, pura loção de barba e às vezes Cuir de Russie.
O colégio cheirava a muitas camadas de tinta a óleo, massinha e giz. E a lágrimas amargas choradas e lambidas, inexplicáveis, quando o piano era sacudido nas aulas de canto por "Cachorrinho Está Latindo Lá no Fundo do Quintal". Cheiro de café com leite engolido às pressas, sanduíche de lancheira e cheiro de fundo de mala com ciscos de borracha velha e lascas de lápis apontados. Este último ressurge sempre no cominho seco das receitas.
O trem mudava o cenário, cheiro de máquina, ferro, fumaça, pó preto, metal desconjuntando, gemendo, chacoalhando, cheiro de trem que atinge o cérebro.
E aí o Rio de Janeiro, apartamento de avó, escuro, velando papinhas de maçã e leite em pó. Os primeiros bafos de maresia e lixeira de corredor.
A vastidão de Minas, craquelenta ao sol, clara, aberta. Os rios de águas claras que não se contaminam com o lodo, cheirosos frescos, adolescentes rindo em burburinhos e brincos prateados de piabas. Enroscados nas pedras os bagres, estes cheirando à terra, bigodes levemente deprimidos.
E, debaixo das mangueiras velhas, a umidade do tronco escorregadio, as folhas apodrecendo no chão, o gosto súbito de terebentina, de doce, de manchas pretas, a gosma amarela repuxando as bochechas.
E os cheiros mais fortes, os de sempre, permeando a roça, o caminho, a estrada; os cheiros de estrume, fogueira, pólvora, jasmim, fogo apagado com água jogada nas cinzas.

Estes são os ingredientes básicos do "Pato com laranjinhas da China". Passemos ao modo de fazer...


Um comentário:

  1. Gostei Ivan, eu morava na Rua Catanduva ali perto do Macul. Lembrei-me do tempo que eu era criança. Saudades......

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