domingo, 18 de dezembro de 2011

No bailado das águas do tempo

Fonte da Praça São Bento 

O lago no Paço Municipal, hoje um jardim no lugar 

Fonte iluminada e fachada da prefeitura municipal

No frescor das praças iluminadas a cidade foi se estruturando

O artigo de hoje foi inspirado por uma publicação feita em 15 dezembro de 1959, no Jornal Correio de Marília, hoje Diário de Marília, pelo jornalista José Arnaldo Bravos, na sua coluna “De Antena e Binóculo”. Os escritos dele estão circulando pela Net através da iniciativa de Sueli Amaral, sua filha, casada com o também jornalista Cláudio Amaral, ambos moradores em Santos atualmente, mas que são apaixonados pelo bairro da Aclimação em São Paulo e por Marília, é claro. Eles criaram o blog que tem o mesmo nome da tradicional e importante coluna da época e nos brindam com o envio dos artigos.
Na data acima mencionada, José Arnaldo registrava que o “footing” da cidade estava se desviando e repartindo público com outro ponto atrativo. A causa de tudo foi a inauguração da fonte iluminada no novo Paço Municipal.
Para melhor entender o contexto, é preciso lembrar que, naquela época, o encontro das pessoas e muitas histórias de namoros começavam com a prática de ficar andando pelas praças e calçadas, em duplas ou em grupos, ou circulando pelos principais pontos da Avenida Sampaio Vidal.
Hoje, pode parecer loucura, mas as pessoas literalmente andavam em círculo, obedecendo até mesmo um sentido de mão de direção, no qual outros iam se achegando e entrando na roda. As calçadas, da esquerda e da direita, na principal via da cidade, eram tomadas por jovens, por casais e por famílias com crianças, que interagiam de forma espontânea e colocavam o bate papo em dia.
As moças, sempre muito bem arrumadas, perfumadas e recatadas, arriscavam, no máximo, um olhar de canto de olho em direção a um pretendente. Um sinal de permissão para uma abordagem mais próxima era deixar cair um lenço das mãos, que de imediato seria recolhido pelo cavalheiro, abrindo as portas do diálogo.
Os rapazes, de gravata e terno bem alinhados, sapatos impecavelmente engraxados e lenço branco no bolso do paletó. Para os mais ousados, um topete à moda Elvis Presley, feito com o auxílio da Brilhantina ou da Glostora; nos bolsos, os acessórios de época: pente Flamengo, espelhinho de bolso, com gravura colorida de uma mulher sensual no verso, vendido nas melhores pharmácias e drogarias, cortador de unhas americano, da marca Trim, maço de cigarros (Paquetá, Luxor, Kent, Continental, LM, Hollywood, Minister) e o isqueiro Zippo, à prova de vento, sonho de consumo de muitas gerações.
Estes eventos aconteciam nos quarteirões limitados pelas ruas Campos Sales (que tinha na esquina o Cine Marília), até a rua Nove de Julho, contemplando vários pontos comerciais que reuniam as pessoas para um bom jantar ou mesmo apreciar um sorvete banana split, um frapê, uma coalhada batida com canela e os doces finos de vitrine, servidos em pratos de porcelana e talheres de alpaca, acompanhados de chá ou café.
Os aperitivos podiam ser um Dry Martini, um coquetel Cuba Libre, ou algo mais forte, como o rum Merino, dicas que os filmes estrangeiros traziam através dos seus imponentes e admirados personagens. Para os dias de bolsos mais escassos, valia a inspiração à moda brasileira mesmo: caiam bem o chuvisco - pinga com guaraná gelado, a Maria Mole - pinga com groselha, ou o tradicional rabo de galo, seguido de um cravo discreto, escondido no canto da boca, para aliviar o hálito.
Na esquina da Sampaio Vidal com a Rio Branco, tendo como fundo de cena o prédio da Câmara Municipal, o balé das águas iluminadas por potentes holofotes prendeu a atenção dos motoristas e passageiros e gerou novos problemas no trânsito. Tanto que foi motivo de registro na crônica publicada, onde o autor, fazendo-se porta-voz dos seus leitores, pedia providências das autoridades constituídas no sentido de uma melhor organização na circulação de carros e caminhões, solicitando mais respeito aos pedestres e sugerindo a interdição das vias aos domingos; afinal, havia ali, de um lado da praça, uma fonte luminosa e, do outro lado, a banda municipal executando suas marchinhas e retretas.
Lembramos também de outra fonte luminosa instalada no Jardim da Igreja São Bento, bem no meio do lago, com o diferencial de que tocava músicas nos finais de semana. Coisa de gente feliz, programa de bom gosto popular, para juntar famílias e casais de namorados, onde também as crianças despreocupadas corriam soltas, brincando de pega-pega ou esconde-esconde por entre os jardins e bancos.
Quanto mais alto o tom das notas musicais, mais alto o esguicho se lançava. Dava a impressão de que as gotas, enciumadas dos enamorados, queriam tocar o brilho das estrelas, enquanto olhares lúgubres se entrelaçavam e deitavam juras de amor.
O vento soprava e se misturava com o frescor das águas e dos aromas da pipoca caipira, feita na hora, irresistível até hoje, do amendoim torradinho, do quebra queixo, da paçoca, da cocada, da raspadinha de gelo, com sabor groselha, menta ou limão e dos picolés, para refrescar as noites mais quentes.
Ainda criança, eu ficava intrigado em saber se, na fonte da São Bento, tinha um homem que ficava dentro daquele cone de vidros coloridos, no centro do lago artificial... e como é que ele chegava até lá para colocar as músicas para tocar, sem molhar os pés. Até hoje ninguém me explicou isso.
Ivan Evangelista Jr. é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília
Publicado também no Jornal Diário de Marília, edição 18/12






domingo, 11 de dezembro de 2011

Apicultura fixa o homem na terra

Apicultores instalam novas colméias em área rural



Fazendo a manutenção de colméia - uso do fumegador
 
Reunião da AMAR, na Secretaria da Agricultura

Amar-Marília é uma alternativa para a produção no campo
Na apicultura, o mel para consumo alimentar é considerado como a parte mais simples da cadeia produtiva. Ou seja, não é o produto mais nobre ou o mais valorizado economicamente. Acima dele, estão o própolis, considerado excelente medicamento ou preventivo para algumas enfermidades, o pólen, a geleia real e a coleta do veneno da abelha para fins de produção de vacinas e medicamentos. Mas, neste pouco tempo em que estou participando dos encontros da Amar (Associação dos Apicultores de Marília e Região), noto que a essência do trabalho associativista desenvolvido aqui - desde a sua fundação, no ano de 2006 - é substituir as questões econômicas e do empreendedorismo pela preocupação com a sustentabilidade das ações. Nada mais saudável e em plena sintonia com o momento delicado do planeta, que nos dá sinais constantes de esgotamento.

O apicultor, por natureza de ofício e por paixão, é um preservacionista de plantão e está sempre antenado em manter o equilíbrio dos recursos naturais que utiliza nas suas atividades.
Para ter uma boa produtividade, é preciso que o pasto apícola seja de primeira qualidade e aqui temos os vales e Itambés com variedades atrativas, entre elas, o Assa-peixe, o Capixingui, Sangra D’Água, Ingá e o Angico, regiões estas onde não ocorre a aplicação de agrotóxicos. A conservação e a proteção do conjunto de plantas de uma determinada região, que são fontes de coleta de matéria-prima para as abelhas, são fatores fundamentais neste contexto. Vale o mesmo para as nascentes, fonte de água limpa para as colônias produtivas e de renovação de toda a vegetação; a água é fonte de vida para os homens e para os animais.
Próximas dos apiários, sempre vamos encontrar áreas em que o plantio de mudas de espécies melíferas foi incentivado por grupos preservacionistas ou contaram com a iniciativa de apicultores; quem ganha com isso somos todos nós. Se temos mais abelhas na região, haverá maior polinização, teremos mais frutas e maior reprodução de espécies nativas que promovem o equilíbrio do meio ambiente.
Na reunião da Amar, realizada no domingo, dia 4 de dezembro de 2011, tivemos uma visão geral dos companheiros que compartilham esta experiência fantástica de manter a atividade familiar da apicultura em nossa região, bem como nas cidades de Pompeia, Tupã, Vera Cruz, Echaporã, Parapuã, Bastos, Garça.
São pessoas simples, gente que tem paixão pela natureza e que investe no aprimoramento das técnicas da apicultura sustentável. O resultado econômico faz parte, sim, não há dúvidas, mas antes de tudo estão o companheirismo, a troca de informações, o prazer dos encontros e de compartilhar uma atividade que reúne pessoas de alto astral e que pensam sustentabilidade.
A Amar, sob a presidência de Antônio Fernando Scalco, está prestes a instalar a Casa do Mel, resultado de muito trabalho de pioneiros que sempre acreditaram nesta ideia de ter um centro de coleta, armazenamento, envasamento e distribuição dos produtos gerados pela apicultura. Mas, antes de tudo, é preciso conduzir os associados para um padrão de procedimentos e técnicas de manuseio que garantam a qualidade no final da linha de produção, caseira e profissional, trabalho que vem sendo realizado com o apoio do Sebrae e da Secretaria da Agricultura da Prefeitura Municipal de Marília.
Este é o atual desafio: trazer os produtores informais para as inúmeras vantagens do mercado formal, apresentando produtos que tenham boa aceitação e que sejam “sifados”, expressão utilizada para indicar que o mel tem origem de procedência e registro no SIF (Serviço de Inspeção Federal), atendendo aos requisitos sanitários da produção e comercialização da alimentação saudável. A associação está forte e bem conduzida por seus diretores. Os caminhos estão delineados e, em breve, teremos boas novidades.
Não há dúvidas de que a apicultura é boa alternativa para manter o homem na terra, com benefícios diretos ao meio ambiente, ao desenvolvimento sócio-econômico da região e ao aumento da renda familiar. A criação de enxames caseiros faz parte da história de muitas famílias, principalmente quando as casas tinham quintais grandes, com plantio de frutas e hortaliças que abasteciam as mesas.
Conta-nos, também, o amigo e agricultor Paulino Munhoz Placa que, durante o período pós-guerra, saía em lombo de burro do Distrito de Avencas em direção à estrada para Pompeia. Lá, havia uma venda que comercializava açúcar mascavo no mercado paralelo. Foi neste período que a produção caseira do mel minimizou os efeitos da escassez de alimentos na mesa do caboclo brasileiro.
Ivan Evangelista Jr
É membro da Comissão de Registros Históricos de Marília
Artigo publicado no Jornal Diário de Marília, edição de 11/12/11







segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Quem nunca jogou uma pelada, não sabe o que perdeu


Todos eram grandes nas suas qualidades e no companheirismo

Ao descer a rua Antonio Prado, no bairro São Miguel, logo após a passagem pelo cruzamento da linha férrea, do lado esquerdo podemos observar um grande posto de combustíveis. O que pouca gente sabe é que, por muitos anos, o terreno onde foi construído o posto era conhecido como “O campinho do Pioneiro”.
Foi ali o palco de grandes partidas de futebol, conhecidas como peladas. Geralmente, um time jogava com camisa e o outro sem camisa, para diferenciar as equipes. O batismo do campo surgiu em razão do antigo Bazar Pioneiro, localizado bem no meio do quarteirão, um dos primeiros a se instalar na região.
Para formar os times, o processo era bem interessante. Normalmente, dois líderes, bons de bola, disputavam no par ou ímpar para saber quem começava a escolher primeiro. Vinha moleque de tudo quanto é canto, que formavam um grande grupo enquanto esperavam a formação do time.
“Fulano é meu...”, dizia um. “Beltrano é meu...”, retrucava o outro. E, assim, os escolhidos iam formando uma fila atrás do grande líder.
Num primeiro momento, os bons de bola eram apontados e disputados, depois os mais ou menos e em seguida a “rapa”, como eram chamados aqueles que geralmente entravam para completar o quadro e ainda ficavam incumbidos de buscar a bola quando arremessada para fora do campo e no meio do mato. Mesmo assim, antes do início do jogo, ainda se fazia uma avaliação para ver se um time não estava mais forte que o outro. Se isso fosse constatado, seguia nova etapa de negociação: “eu te dou este e você me dá aquele”... eram os craques sendo disputados a peso de ouro ou os grandões, que pegavam forte na defesa.
Não havia uniforme e os pés descalços anunciavam que, mais cedo ou mais tarde, uma tampa do dedão do pé ia ficar enroscada numa pedra escondida pela areia. Os chinelos de dedo eram amontoados nas duas extremidades do campo e improvisavam as traves do gol. O campo era delimitado por pedaços de paus ou pedras, mais ou menos alinhados nas laterais e unidos por um risco no chão, feito com os calcanhares mesmo, sempre imundos e rachados.
Se alguém chegasse calçado com um Conga, daqueles azuis, com a biqueira branca, imediatamente era intimado a tirar. Aliás, ter um Conga nesta época era sinal de que o Natal ou o presente de aniversário foi gordo; depois viria o Kichute, todo preto,com biqueira reforçada e sola com cravos, artigo de luxo, mas que dava um chulé que nem banho com Lysoform tirava a catinga dos pés.
Os times vinham de uma formação básica que começava na vila onde os garotos moravam. Quando era marcado jogo de vila contra vila, era fato consumado que o couro ia comer na partida e o time visitante tinha que tomar todos os cuidados para sair com o mínimo de prejuízo e de machucados.
Toda partida ia bem até acontecer uma falta mais dura ou uma cochilada do juiz, que deixou de apitar um lance que poderia ser ‘aquele’, o decisivo do jogo, mas perdeu a jogada e deu prejuízo. Invasão de campo, xingamentos, ameaças e, não raro, uns cascudos de raspão no árbitro para deixar bem claro que ele estava indo contra os desejos do mandante, neste caso, o time que supostamente era o titular daquele campinho.
Outra regra era bem clara - apanha porque ganhou do time da casa, ou apanha porque perdeu, ou porque, mesmo perdendo, teve jogador atrevido que deu um ou dois dribles mais ousados no ídolo do time ganhador. A saída era levar torcida maior para tentar intimidar o adversário... às vezes funcionava.
Jorginho Putinatti
Foi neste campinho improvisado e também num outro, que ficava na rua Coelho Neto, hoje sede da indústria Marcon, que nasceu um grande ídolo do futebol brasileiro e do Palmeiras, o Jorginho Putinatti. Já naquela época, ele era fã do time do Palmeiras e sabia a escalação decorada e salteada de todas as partidas. Cresceu junto de nós, dizendo que iria jogar no time dos seus sonhos, gravou suas palavras no universo e realizou seu sonho. É um craque, na bola e na vida, onde fez escola para outros meninos.
Dos nomes desta turma do campinho da Coelho Neto, voltam fácil à mente: Jorginho; Vartão, nosso Pelé, hoje policial militar aposentado e empresário, filho do seu Valdomiro, maquinista da Fepasa; os irmãos Zé Arnaldo e Júlio Esteves, filhos do seu Francisco da Antárctica e da Dona Olinda, costureira; do Betão, filho da Dona Genilda, também mãe do Gilsão, bombeiro aposentado; do Bilão; do Zé Luiz padeiro; do Miltão e mais um monte de amigos dos quais tenho muitas saudades. Os tratamentos eram quase todos assim, no superlativo mesmo, do mesmo tamanho da amizade e do respeito que havia entre o grupo. Todos eram grandes nas suas qualidades e no companheirismo e valia a regra do “mexeu com um mexeu com todos”.
Hoje, os campinhos continuam espalhados pelos bairros onde vemos as novas gerações jogando até o sol cair no horizonte, com as mesmas regras. São oásis de cultura e de amizade, neste universo moderno de vídeo games, de celulares, de computadores e de fones de ouvido, que isolam garotos e garotas em sua mais tenra idade, ainda que conectados virtualmente.
Quem nunca jogou uma pelada em campinho de terra batida perdeu uma grande oportunidade de descobrir o verdadeiro futebol e de ouvir mães e tias gritando: “menino, vem jantar que tá na mesa... larga essa bola menino... o sol já caiu e você ainda tá aí sem tomar banho!”

Ivan Evangelista Jr
É membro da Comissão de Registros Históricos de Marília
Publicado no Jornal Diário de Marília, edição de 04/12/11