segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Quem nunca jogou uma pelada, não sabe o que perdeu


Todos eram grandes nas suas qualidades e no companheirismo

Ao descer a rua Antonio Prado, no bairro São Miguel, logo após a passagem pelo cruzamento da linha férrea, do lado esquerdo podemos observar um grande posto de combustíveis. O que pouca gente sabe é que, por muitos anos, o terreno onde foi construído o posto era conhecido como “O campinho do Pioneiro”.
Foi ali o palco de grandes partidas de futebol, conhecidas como peladas. Geralmente, um time jogava com camisa e o outro sem camisa, para diferenciar as equipes. O batismo do campo surgiu em razão do antigo Bazar Pioneiro, localizado bem no meio do quarteirão, um dos primeiros a se instalar na região.
Para formar os times, o processo era bem interessante. Normalmente, dois líderes, bons de bola, disputavam no par ou ímpar para saber quem começava a escolher primeiro. Vinha moleque de tudo quanto é canto, que formavam um grande grupo enquanto esperavam a formação do time.
“Fulano é meu...”, dizia um. “Beltrano é meu...”, retrucava o outro. E, assim, os escolhidos iam formando uma fila atrás do grande líder.
Num primeiro momento, os bons de bola eram apontados e disputados, depois os mais ou menos e em seguida a “rapa”, como eram chamados aqueles que geralmente entravam para completar o quadro e ainda ficavam incumbidos de buscar a bola quando arremessada para fora do campo e no meio do mato. Mesmo assim, antes do início do jogo, ainda se fazia uma avaliação para ver se um time não estava mais forte que o outro. Se isso fosse constatado, seguia nova etapa de negociação: “eu te dou este e você me dá aquele”... eram os craques sendo disputados a peso de ouro ou os grandões, que pegavam forte na defesa.
Não havia uniforme e os pés descalços anunciavam que, mais cedo ou mais tarde, uma tampa do dedão do pé ia ficar enroscada numa pedra escondida pela areia. Os chinelos de dedo eram amontoados nas duas extremidades do campo e improvisavam as traves do gol. O campo era delimitado por pedaços de paus ou pedras, mais ou menos alinhados nas laterais e unidos por um risco no chão, feito com os calcanhares mesmo, sempre imundos e rachados.
Se alguém chegasse calçado com um Conga, daqueles azuis, com a biqueira branca, imediatamente era intimado a tirar. Aliás, ter um Conga nesta época era sinal de que o Natal ou o presente de aniversário foi gordo; depois viria o Kichute, todo preto,com biqueira reforçada e sola com cravos, artigo de luxo, mas que dava um chulé que nem banho com Lysoform tirava a catinga dos pés.
Os times vinham de uma formação básica que começava na vila onde os garotos moravam. Quando era marcado jogo de vila contra vila, era fato consumado que o couro ia comer na partida e o time visitante tinha que tomar todos os cuidados para sair com o mínimo de prejuízo e de machucados.
Toda partida ia bem até acontecer uma falta mais dura ou uma cochilada do juiz, que deixou de apitar um lance que poderia ser ‘aquele’, o decisivo do jogo, mas perdeu a jogada e deu prejuízo. Invasão de campo, xingamentos, ameaças e, não raro, uns cascudos de raspão no árbitro para deixar bem claro que ele estava indo contra os desejos do mandante, neste caso, o time que supostamente era o titular daquele campinho.
Outra regra era bem clara - apanha porque ganhou do time da casa, ou apanha porque perdeu, ou porque, mesmo perdendo, teve jogador atrevido que deu um ou dois dribles mais ousados no ídolo do time ganhador. A saída era levar torcida maior para tentar intimidar o adversário... às vezes funcionava.
Jorginho Putinatti
Foi neste campinho improvisado e também num outro, que ficava na rua Coelho Neto, hoje sede da indústria Marcon, que nasceu um grande ídolo do futebol brasileiro e do Palmeiras, o Jorginho Putinatti. Já naquela época, ele era fã do time do Palmeiras e sabia a escalação decorada e salteada de todas as partidas. Cresceu junto de nós, dizendo que iria jogar no time dos seus sonhos, gravou suas palavras no universo e realizou seu sonho. É um craque, na bola e na vida, onde fez escola para outros meninos.
Dos nomes desta turma do campinho da Coelho Neto, voltam fácil à mente: Jorginho; Vartão, nosso Pelé, hoje policial militar aposentado e empresário, filho do seu Valdomiro, maquinista da Fepasa; os irmãos Zé Arnaldo e Júlio Esteves, filhos do seu Francisco da Antárctica e da Dona Olinda, costureira; do Betão, filho da Dona Genilda, também mãe do Gilsão, bombeiro aposentado; do Bilão; do Zé Luiz padeiro; do Miltão e mais um monte de amigos dos quais tenho muitas saudades. Os tratamentos eram quase todos assim, no superlativo mesmo, do mesmo tamanho da amizade e do respeito que havia entre o grupo. Todos eram grandes nas suas qualidades e no companheirismo e valia a regra do “mexeu com um mexeu com todos”.
Hoje, os campinhos continuam espalhados pelos bairros onde vemos as novas gerações jogando até o sol cair no horizonte, com as mesmas regras. São oásis de cultura e de amizade, neste universo moderno de vídeo games, de celulares, de computadores e de fones de ouvido, que isolam garotos e garotas em sua mais tenra idade, ainda que conectados virtualmente.
Quem nunca jogou uma pelada em campinho de terra batida perdeu uma grande oportunidade de descobrir o verdadeiro futebol e de ouvir mães e tias gritando: “menino, vem jantar que tá na mesa... larga essa bola menino... o sol já caiu e você ainda tá aí sem tomar banho!”

Ivan Evangelista Jr
É membro da Comissão de Registros Históricos de Marília
Publicado no Jornal Diário de Marília, edição de 04/12/11



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