domingo, 2 de fevereiro de 2014

Rua Cantanduva

Está localizada no bairro Alto Cafezal, região da antiga rodoviária intermunicipal de Marília, com início na Av. Sampaio Vidal e término na rua Santa Cecília. É uma região que se desenvolveu bem e acredito que o principal motivo seja pelo fato de estar próxima, no passado, de centros produtivos e geradores de empregos, como por exemplo o Matarazzo, a Antarctica, a Fiação Macul, o Zillo, entre outros. Isso garantia um bom salário aos trabalhadores e o consequente investimento em construção de moradias de melhor padrão.
                Antes de escrever este artigo, tive a curiosidade de percorrer a rua em toda a sua extensão e constatei que, pelo menos, umas 25 casas de madeira ainda enfeitam os quarteirões. Mas há muito mais para se ver, como por exemplo, no quarteirão 800, os blocos de cimento, frisados, para dar maior aderência para as rodas das carroças e para os animais não escorregarem, que foram utilizados para calçar a rua. Vale lembrar que a famosa chácara São Carlos ficava bem no final da via.
                A rua Catanduva já foi bem comercial e os pequenos comércios instalados atendiam aos moradores da região e de bairros vizinhos, com o detalhe de que contava com várias famílias de japoneses. Conferi que o antigo prédio do empório Líder, da família Tokumo, ainda está por lá, porém com as portas fechadas. Era uma alegria fazer compras neste local, sempre muito dinâmico. Lembro que o gerente tinha o costume de manter a caneta sempre atrás da orelha direita, de onde passava a mão e conferia em voz alta a lista de compras que seriam entregues nas residências e sítios.
                Logo no início da rua, ainda encontramos registros arquitetônicos da antiga Fiação de Seda Macul, onde trabalhou a senhora Maria de Lourdes Vicentini Jorente, que aos 17 anos já tinha a responsabilidade da gerência de produção. Logo na esquina (década de 70), funcionava o posto Cerejeira, hoje fechado, mas mantém a placa com o nome do estabelecimento, também administrado por família de japoneses.
                No quarteirão onde hoje estão instalados o Sindicato dos Comerciários e o Sindicato Rural, havia duas oficinas, a dos Marques, família de portugueses, e a dos Ferracini, família de italianos. Eram oficinas tipo faz de tudo, de fundição mecânica a reparos em maquinários agrícolas e veículos. Do Sr. Sérgio e do Sr. Mário Ferracini, ainda temos em casa uma mariquinha para coador de café, feita em alumínio fundido. Dos Marques, um dos filhos montou oficina no mesmo bairro e produz equipamentos para suporte logístico. Havia ainda o Sr. Domingos Vani, hoje morador na rua José de Anchieta, proprietário da oficina de tornearia.
                Alguns leitores que tenham melhor referência da região vão se lembrar da tradicional Casa de Tecidos São Jorge, propriedade da família Ayoube (Michel e Fauzer). Dona Floriza, esposa do seu Michel, era avó de um amigo de infância (Jorge) e vez ou outra nos brindava com uma assadeira de quibe assado que tinha acabado de tirar do forno. Nos sentávamos à sombra de uma enorme mangueira que ficava nos fundos do terreno para saborear a iguaria. Este é outro detalhe curioso da época: o comércio geralmente era na frente do terreno, a casa da família fazia fundos com a loja e ainda sobrava área de quintal para plantar frutíferas e hortaliças.
               
No recente passeio, registrei com alegria a boa conservação da Capela de São Vicente, que religiosamente tocava os sinos para anunciar que o horário da missa estava próximo. Era ouvir o sino e as comadres se arrumavam com destino à capela. Lembro da minha querida tia Flora Ferracini, que puxava a fila e ia passando pela casa das amigas e todas seguiam solenemente vestidas com o véu branco rendado sobre os ombros, terço e livrinho da missa nas mãos e mais uma fita vermelha, indicação de ser membro do "Apostolado da Oração do Sagrado Coração de Jesus" ou a fita azul, que era o sinal de ser "Filha de Maria", mais o vestido branco de mangas compridas, complementada pela faixa azul amarrada na cintura, com as pontas descendo até a altura dos joelhos.
                Os Vicentinos homens, entre eles o Sr. Quito (do Bar do Quito) e o Sr. Tenório Dantas, pai do meu querido amigo médico Dr. Dantas, eram os encarregados de atender a parte social. Visitavam as famílias carentes que procuravam auxílio na igreja, quase sempre em busca de alimentos ou donativos em dinheiro para fazer uma comprinha, ou pagar a conta de água ou luz, que vivia atrasada. Dona Flora se derretia toda ao ouvir o desfiar das histórias tristes de vida, já o Sr. Quito não, era mais firme. Quase sempre passava um sermão pela falta de organização ou limpeza na casa visitada, ou, se fosse o caso, orientava a mãe e dava um "puxão de orelhas", carinhoso, sobre a importância do controle de natalidade para evitar o aumento das despesas. Importante registrar que todos sempre foram bem atendidos, como são até hoje, um trabalho social relevante da comunidade com a igreja.
                De Garça a Lucélia, Sr. José Tenório Dantas era o responsável pela organização Vicentina e foi sua esposa, dona Isaura Dantas, quem nos atendeu pelo telefone e nos contou com alegria sobre este trabalho, ajudando a recuperar os detalhes sobre as vestimentas das mulheres
                Para encerrar a pesquisa, passei pelas instalações do antigo Ginásio Industrial "Antonio Devisate", onde hoje estão o Ceprom e a Secretaria de Governo Municipal. A escola teve sua importância no passado, contribuindo para a formação de profissionais nas áreas de marcenaria, mecânica e desenho industrial. Foi nesta visita que conversei com o amigo Jorente, oportunidade em que fiquei sabendo que ali também funcionou uma fiação de seda, com a participação e investimento do imigrante Jorge Kawasaki. A vocação continua e hoje a escola oferece cursos profissionalizantes em parceria com o SENAI, nas áreas de gastronomia e serviços gerais, e está passando por reformas para melhor adequar o atendimento aos alunos.
               
Talvez por ter morado na região, a visita à rua Catanduva me trouxe alegria e sensação de bem estar. Ao registrar as fotos das casas, da igrejinha, do leito da rua, sons e risadas do passado saltavam da memória e preenchiam os espaços com os rostos de amigos de infância, das pipas coloridas enroscadas nos fios, das mulheres regando seus jardins, cheios de margaridas e rosinhas brancas ou de adálias repolhudas. Na brisa suave do vento, o cheiro do feijão, esquentando sobre o fogo baixo do fogão, aguardando seus maridos extenuados da jornada de trabalho. Havia uma sinfonia, harmônica e balsâmica, que tocava todos os dias, quase sempre puxada pelos sinos da capela. Depois, era sentar na varanda, ligar o rádio e aguardar a chamada:"Em Brasília, 19 horas, está começando a sua Voz do Brasil".
               
Ivan Evangelista Jr. é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília
Publicado no Jornal Diário de Marília em 02/02/2014

                contato: evangelista@univem.edu.br

7 comentários:

  1. Ivan aquela região também lembra um pouco de minha adolescência. Apesar de não ter morado na rua Catanduva, eu morei na Santo Antonio próximo do número 1000, na Lima e Costa próximo ao Segundo Grupo e na rua São Carlos a uma quadra da St. Antonio. É uma região que ainda guarda muito de suas origens, boa de se morar, perto de tudo (em Marília o que é longe?). Parabéns pela "reportagem".

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  2. Ivan, que belas fotos. Sempre que posso, passo pela rua Catanduva, desde a av Sampaio Vidal até a Coroados. É uma paz a qualquer hora do dia. Parabéns!

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  3. Sr. Ivan, bela iniciativa a sua! Moro nessa rua desde meus 4 anos de idade, hoje tenho 26! Claro, não vivenciei 1/10 do que é narrado, mas certos vestígios fizeram parte da minha infância! Tem sido uma viagem para mim ler suas postagens, navegando pela nostalgia que me traz o passado da cidade que tanto amo, imaginando a vida de meus pais, tios e avós que foram escritas todas por essas ruas...

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