sábado, 30 de agosto de 2014

A Rua Coroados


Em abril de 2005, a professora, pesquisadora e historiadora Rosalina Tanuri editou, pela Comissão de Registros Históricos da Câmara Municipal e da Cidade de Marília, a segunda edição da publicação "Índios Kaingangs ou Coroados”. Na apresentação da obra, encontramos uma frase que resume a sua paixão pela profissão que abraçou com tanto amor e carinho: "...Assim agindo, a Comissão pretende facilitar o trabalho dos mestres e despertar nos estudantes o interesse pelas coisas que são realmente nossas. É mais fácil amar o que se conhece."
No curioso e investigativo conteúdo das páginas, encontramos a informação de que a denominação de Caingangue (já abrasileirado) se dá ao indivíduo dos Caingangues, grupo indígena de SP, PR, SC e RS, já integrado na sociedade nacional, cuja língua era outrora considerada como jê, e que hoje representa uma família própria. São chamados também, em parte, de Coroados, Camés e Xoclengues. Adj.2g.2. Pertencente ou relativo aos caingangues.
Estes eram os habitantes que dominavam a margem direita do Rio do Peixe, atualmente chamado de Alta Paulista.  Esta informação consta do relatório, ano de 1905, elaborado pela Comissão Geográfica e Geológica do Estado, obra que se encontra disponível na biblioteca da Câmara Municipal, a qual eu recomendo a leitura a todos aqueles que querem conhecer de fato as nossas origens. Um misto de romance e aventura, com histórias vivas dos nossos primeiros desbravadores.
No relatório, consta que foi encontrado aldeamento de Coroados nas proximidades da cabeceira do Pombo, rio que tem suas nascentes na Rua XV de Novembro, proximidades do Mercadão. O nome de Coroados foi dado pelos exploradores, ou homens brancos, como eram chamados pela população indígena, pelo fato de os índios terem as cabeças raspadas no alto, corte de cabelo parecido com uma coroa de clérigo.
Na missão de desbravar e conquistar terras para a instalação dos futuros povoados na região, menciona a história que os brancos foram piores que os bárbaros, tamanha a crueldade nos embates com os índios, esquartejando corpos e deixando-os expostos em estacas, inclusive crianças e mulheres. O coordenador de toda esta ação foi o Coronel Francisco Sanches de Figueiredo, idealizador das "dadas", as comitivas, armadas até os dentes com a finalidade de expulsar e eliminar os índios do Rio do Peixe.
Covolan explicando os mapas  da região
Tive a alegria de participar, com os amigos da Comissão e com o pesquisador e professor Antonio Carlos Covolam, de uma expedição histórica, onde fomos até o ponto de encontro do Rio do Peixe com o Rio Feio, no bairro da Corredeira e Fazenda da Faca, sede das expedições, sendo este o local onde o Monsenhor Claro foi alvejado pelas flechas dos Coroados. Seguimos, literalmente, os passos da história que constam do relatório Hummel. Foi uma experiência incrível para todos nós. O cinegrafista Eduardo Leme produziu e dirigiu o filme que é documento histórico, relato desta expedição que resgatou parte da nossa memória cultural. O filme faz parte do acervo da Comissão e está à disposição da população. 
A Rua Coroados tem o primeiro quarteirão na esquina com a Avenida Rio Branco, sendo a casa de número 30 a primeira que identifiquei com numeração residencial. Porém, é a casa 37 que ainda guarda traços históricos. Casa de madeira, instalada imponente no alto do terreno, com aquelas janelas tipo venezianas, trabalho artístico, como já não se faz hoje em dia.
Deste ponto, sentido crescente, cruzamos o antes temido "Morro do Querosene", bairro histórico. Se, por um lado, o morro era "quente", é de lá que também Marília ganhou muita gente boa, como é o meu amigo Duja, o Dujardes, o pintor de paredes, o artista de teatro de arena, que numa conversa com o prof. Wanderley Martins Mendes, o Wando, foi incentivado a fazer o concurso do Banco do Estado de São Paulo. Aprovado, ele tornou-se bancário, um dos caixas mais alegres e receptivos de Marília. Duja é da terra e do terreiro, sambista sangue bom, amigo do Mingão, e de toda a comunidade do saudoso Querosene.
Até a esquina com a Rua Paes Leme, a mão de direção é única, sentido Rio Branco - bairro Alto Cafezal. Depois, segue com mão dupla, passando pela tradicional Casa dos Parafusos, a Maribox, do Vicentinho, o Super Mercado Uliam, e a ponte que passa sobre o antigo córrego do Pombo.
Um projeto antigo previa a construção de uma vicinal sobre o córrego canalizado, ligando a antiga Rodoviária de Marília, instalada na Rua 24 de Dezembro, até a rodovia do contorno, visando facilitar o fluxo dos ônibus. Ficou no projeto. A área ganhou, recentemente, um conjunto de prédios de apartamentos populares que não está finalizado. Quem sabe com a entrega das novas moradias o projeto da via seja retomado.
Já nos quarteirões finais, encontramos a Escola de Educação Infantil Pirlimpimpim, anexa ao Colégio Bezerra de Menezes. A área localizada na esquina com a Rua Dr. Joaquim de Abreu Sampaio Vidal é reserva verde das mais belas na cidade, contando com exemplares de Jacarandá Mimoso, Figueira, Jatobazeiro, e uma grande Seringueira, em cujo tronco imponente e modelado brincam as crianças, sob a sombra fresca e o canto de pássaros.  O colégio construiu um belo parque infantil, aproveitando todo este contexto lúdico e saudável, com direito à casa na árvore e lanches em meio à natureza.
Na última quadra, está o Centro Espírita Dr. Bezerra de Menezes, nº 1.606, e neste mesmo ponto a Rua Coroados se finda, dando início à Rua José Ferreira da Costa. Passear pela Rua Coroados foi uma experiência muito boa, registrei vários estilos arquitetônicos de casas, uma espécie de linha do tempo da nossa história e da nossa gente.
 
 

Ivan Evangelista Jr. é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília

Contatos: evangelista@univem.edu.br , publicado no Jornal Diário de Marília, em 31/08/2014

terça-feira, 26 de agosto de 2014

O Curta que não rodou

Depois que contei a história abaixo para o Joel Jr, cinegrafista e produtor de mídia digital, ele fez o comentário: "você sabe que até daria um curta metragem!".

O curta que não rodou.

 Conversando ontem com Joel Junior Souza comentei sobre uma pipa que pairava sobre o centro da cidade. Estampava a bandeira inglesa, sustentada por uma linha quase invisível que a remetia sabe-se lá onde.
Uma pipa, bem no centro da cidade? Como assim? É muita ousadia, em manhã de plena segunda, sobrevoar a Sampaio, sem compromisso.
Além do mais, crianças no centro da cidade ...são quase uma raridade e ainda soltando pipa!? Não. Elas estão presas em seus apartamentos, quando muito, soltam sacolinhas de plástico pela janela para ver o seu bailado no vento, por pura peraltice e curiosidade.
Mas se tinha pipa no céu é porque tinha alguém na outra ponta da linha.
E lá estava ele, na Praça São Bento. Bermuda amarela, toda estampada, camisa da seleção brasileira com o nome do Ronaldinho, óculos de sol de armação branca, no maior estilo fashion day.
Um garoto, um menino? - Não. Era um rapaz, tinha lá seus dezenove ou vinte anos. Donde é que surgiu este personagem?
Soltava e recolhia a linha, desbicava, provocava o vento e as pessoas.
Que magia tem uma pipa no céu, inda mais quando paira sobre o centro nervoso da cidade. Seu bailado inquieto, tal como flauta de encantador de serpentes, conseguiu, ainda que por alguns minutos, tirar algumas pessoas do seu mundo fechado, dos cárceres dos fones e iPads, e erguer os olhos acima da linha do coração.
Ahhh!, existe luz lá em cima, nuvens, cores e o vento que empurra as nuvens para que o céu azul apareça.
E tudo porque tinha uma pipa no céu.

domingo, 24 de agosto de 2014

A Rua Alagos (atual Rua Paulo Corrêa de Lara)



Placa ainda não foi substituída
Foi a secura do tempo que me inspirou a escrever sobre esta rua. Nestes dias de inverno, ainda que os ipês brancos e amarelos estejam enfeitando as ruas, sentimos falta daquele cheiro de chuva batendo no asfalto, ou mesmo do vento que vem dos vales trazendo aromas enigmáticos e agradáveis.

Na região central, quando bate uma garoa passageira, o máximo que sentimos é um cheiro de poeira apagada, que pega forte na garganta. 

Já notaram que até os carros estão rangendo as suas entranhas? É o acúmulo de poeira, misturado à graxa seca dos amortecedores, dos guarda-pós e suspensões, mostrando que mesmo as máquinas pesadas sofrem com a falta de chuva. Sofrem igualmente a grama seca dos jardins e praças,as flores que desabotoam, num misto de jovialidade e senilidade. Até as laranjas das feiras estão ressentidas... vistas de longe, são viçosas e coloridas, porém, quando tocadas, notamos que não estão tão apetitosas assim.

É o ciclo do tempo, sabemos disso, mas de certa forma não aceitamos, queremos tudo verde, tudo viçoso, brisa fresca na janela aos primeiros acordes da manhã e ao entardecer.

Embalado por estas divagações, me dei conta de que a nossa cidade já teve muitas fontes de água, tanto para saciar a sede dos homens como também a dos animais. Na fonte do Largo do Sapo, eu acompanhava meus pais, pelo menos duas vezes por semana, para encher os garrafões de vidro com água boa de beber. Salvo engano, eram quatro bicas, duas mais vazantes e as outras duas mais minguantes.

Pintura de Juraci Neriz
Lembro ainda que o pai ficava por conta quando a gente chegava no local e os carroceiros estavam dando de beber para os animais. Cansados da lida de transportar pedras para fazer os calçamentos de peti pavê, de carregar lenha para os fogões e areia fina para construções, ali era o oásis da tropa fadigada . Encostavam na fonte, soltavam os arreios, desatrelavam as carroças e, com baldes improvisados, feitos de latas de banha  ou de azeitonas Colosso, despejavam água sobre o lombo das mulas e das éguas.

Os varões das carroças, soltas dos seus "motores", ficavam apontados para o céu, enquanto os condutores ajeitavam a lata de milho, ou buscavam nas proximidades uma moita de capim gordura, fresco, como prêmio aos animais pelo trabalho duro.

As outras fontes que me recordo são: as (2) do Matarazzo, nas ruas Nelson Spielman e 15 de Novembro, a da indústria Clayton, onde hoje está a Avenida das Esmeraldas,  a fonte da antiga Circular, e a fonte da Rua Alagoas, sendo esta exclusiva para os animais. Já me contaram sobre um segundo bebedouro que ficava na confluência da Sampaio Vidal com a Campos Sales, mas eu não encontrei  fotos ou outros registros. 

Interessante notar a abundância de água potável que a cidade dispunha até certo período da história, afinal,  estamos assentados  sobre uma grande escarpa, tanto que nossa altitude em relação ao nível do mar é de 680 metros em alguns pontos centrais da cidade.  Podemos dizer que também temos a benção de estarmos sobre o aquífero Guarani. Na baixada da Rua Amazonas, está outro exemplo de terreno "minado". Para se construir na área foi preciso drenar o local e utilizar modernas técnicas de engenharia.

A substituição dos calçamentos de paralelepípedo (permeável) pelo asfalto, a instalação de mais vias para tráfego de automóveis, a  impermeabilização de grandes áreas para construções ou estacionamentos, a diminuição  acentuada  da quantidade de árvores, tudo isso contribuiu para o desaparecimento das minas. 

A Rua Alagoas é parte de um conjunto de ruas paralelas, que homenageiam os estados brasileiros. Começa com a Rua Bahia, depois vem com as ruas Maranhão, Alagoas, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Mato Grosso, sendo estas do lado de baixo da linha férrea. Mas a história nos conta que várias ruas na cidade já tiveram o nome trocado. É o caso da  Rua Nove de Julho, que antes tinha a denominação de Rua Ceará, fazendo parte da sequência dos estados.

E assim aconteceu também com a Rua Alagoas. Em 28 de abril de 2011, foi apresentado o Projeto de Lei nº 57/2011, que solicitava a alteração, sendo aprovada pela Câmara Municipal. A Lei nº 7373, publicada em 16 de dezembro de 2011, alterou a denominação para Rua Paulo Corrêa de Lara, homenageando o conhecido pioneiro. Dentre as justificativas apresentadas que calçaram as argumentações e justificativas para as discussões na Câmara, inclui-se todo o trabalho benemérito do cidadão, como, por exemplo: a participação ativa na fundação do Hospital Espírita de Marília, da Associação Filantrópica, da Mansão Ismael, do Educandário Dr. Bezerra de Menezes, do Lar de Meninas Amelie Boudet, do Instituto Assistencial Espírita de Marília, da Sociedade Luso-Brasileira, da União dos Treze e da Fundação de Ensino "Eurípides Soares da Rocha".

Paulo Lara e sua esposa (acervo Comissão Registros Históricos)
Paulo Corrêa de Lara foi membro da Comissão de Registros Históricos de Marília, autor do livro "Marília, Sua terra, Sua Gente". Pesquisador, sempre gostou de contribuir para o desenvolvimento da nossa cidade. A alteração tem o amparo legal na Lei Municipal nº 1629/69, que permite mudança de denominações de vias públicas que sejam nomes de estados.

É uma rua bem curtinha, temos a Secretaria da Fazenda e o Posto Fiscal de um lado e o prédio do Banco do Brasil do outro, onde antes estava instalado o Hotel São Bento. A placa de identificação da rua ainda não foi substituída. Continua como Rua Alagoas.  
 
Ivan Evangelista Jr, é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília. Publicado no Jornal Diário de Marília, em 24/09/2014 

terça-feira, 19 de agosto de 2014

A Avenida da Saudade

No ano de 2004, a famosa agência de notícias BBC, de Londres, publicou interessante artigo sobre uma lista de dez palavras consideradas as mais difíceis de se traduzir. A lista foi elaborada pela empresa Today Translations e, segundo a nota, contou com a participação de mil tradutores profissionais para chegar ao resultado final, onde a “saudade” ficou em sétimo lugar no ranking.
Ao elencar as palavras, os tradutores tiveram a preocupação de procurar traduzir a real sensação ou significado da palavra, segundo as tradições culturais dos povos. Na língua portuguesa, “saudade” é um sentimento nostálgico que se traduz por sentir falta de alguma coisa ou de alguém.  Segundo relatos, é uma das palavras mais frequentes nas poesias, nas músicas românticas e no Brasil, a origem de sua utilização está no sentimento que os portugueses navegantes expressavam em relação à sua pátria e dos familiares e amigos que deixaram na terra mãe.
Aqui em Marília, nós temos o Cemitério da Saudade, também conhecido popularmente como “campo santo”, localizado na região oeste e que, certamente, deu origem ao nome de uma das principais avenidas, hoje corredor obrigatório para o Campus Universitário e para novos bairros que foram surgindo com a expansão geográfica da cidade.
O fato de que os cemitérios eram, aqui, como em outras localidades, a ponta da linha da cidade, já foi superado há muito. Hoje, estão praticamente incorporados ao contexto urbano, caso de Marília e do Cemitério da Consolação, em São Paulo, dois exemplos bem práticos.
E, já que um dos propósitos desta coluna é resgatar memórias sobre as ruas da cidade, a origem dos nomes, sobre instalações que possam ser visitadas e pontos turísticos, vamos curtir um pouco o lado não tão triste assim do cemitério. Mas existe um lado que não seja triste sobre local onde nos despedimos derradeiramente das pessoas que amamos?
Monumento homenageia imigração
Sim, existe. Estamos falando do contexto artístico que está encerrado entre as sepulturas e vielas, um conjunto de expressões culturais, nas mais diversas formas, que representam o sentimento de saudade dos familiares em relação aos seus entes queridos. Na edição do primeiro guia de roteiros turísticos da cidade de Marília, publicado no ano de 2000, eu sugeri aos leitores conhecerem a pinacoteca a céu aberto instalada no mesmo local.
Obras de arte enfeitam o local
No capítulo em que comento sobre a arte sacra na cidade, menciono as obras da Irmã Laurinda Paulin, apóstola do Colégio Sagrado Coração de Jesus, que além da dedicação à vida religiosa, durante um período de tempo do seu trabalho em Marília recebeu encomendas para pinturas de painéis artísticos para ilustrar as lápides, a maioria pintada em peças de azulejos, os afrescos. Num breve levantamento feito na época, identifiquei mais de sessenta de suas obras, reproduzindo passagens bíblicas e imagens sacras.
Fora as obras da Irmã Laurinda, um olhar mais curioso vai encontrar muitas outras pinturas de autores diversos, uma série de esculturas em bronze, cimento e mármore, com assinaturas de artistas renomados, porém, por estarem num cemitério, e não em um museu ou galeria, ficam quase que anônimos. Há também trabalhos de serralheria artística, adornos e portas de capelas produzidos com material nobre e ricos em detalhes, como já foi um costume de época. Hoje, com os constantes furtos os túmulos são mais simples.  
Num quarteirão próximo ao cemitério, sentido ao centro, havia uma máquina de beneficiamento de arroz, onde estão instaladas oficinas de funilaria e mecânica, duas igrejas, e dois estúdios de TV a cabo da cidade, a TV Marília e mais outro canal que começará a transmitir a partir do mês de agosto, sob a direção do experiente profissional Jurandir Zangaro.
Na esquina com a avenida Rio Branco, o famoso Posto Genezini, que esteve durante muitos anos sob o comando do saudoso Delpho Genezini. Delpho foi pioneiro investidor na Vila Jardim e cidadão muito querido em nossa comunidade, era membro honorário do “8º Quarteirão de Amigos”, e tinha como marca registrada o bordão “Viva a vida!”, frase que expressava com frequência nas rodas de amigos.
Na rotatória localizada em frente ao posto, confluência das avenidas Rio Branco, da Saudade e da Rua Cedral, foi plantado um ipê branco, bem em frente a casa onde ele morava. Entre tantos outros ipês da mesma espécie na cidade, este é sempre um dos primeiros a anunciar a chegada da temporada dos brancos e brinda os transeuntes com uma copa de flores que é o cartão de visitas nos finais de tarde, tendo ao fundo, a contraluz do sol poente.
E, com o passar dos anos, a avenida vai ganhando novos investimentos e novo visual, atraindo comércio diversificado que impulsiona o desenvolvimento da região. Atualmente, a loja âncora deste processo é o Supermercado Florentino, que está ampliando as instalações e área de estacionamento devido ao grande movimento.
Como todo bairro tem seus atrativos de fim de tarde, bem próximo do supermercado, debaixo da copa de um grande ipê roxo, o Tonhão, vendedor de espetinhos, todos os dias, atrai um grupo de fiéis seguidores de sua culinária de beira de esquina. Coisa de Brasil mesmo, que sempre fez sucesso. Aqui ou em grandes capitais, os famosos “churrasquinhos de gato”, como são batizados popularmente estes pontos, têm esta magia cultural popular de reunir pessoas para saborear um petisco, tomar cerveja e rasgar conversa fora sobre três assuntos preferidos dos brasileiros: futebol, política e religião, pela ordem. - E mulher, se esqueceu? Esqueci não! Mulher, principalmente se for a do próximo, é pauta permanente nas rodinhas.    
O detalhe é que iluminação da churrasqueira é uma lanterna de mão; e não pensem que o movimento é pouco, se chegar tarde, corre o risco de perder a oportunidade de experimentar a gastronomia  local. Espeto de carne, frango, linguiça, franbacon, kafta, pernil, a escolha é do freguês.  É como diz um amigo: “Se tem velório de boi, pode me chamar que eu vou e choro de saudade”.

Publicado no Jornal Diário de Marília, em 10/08/2014

A avenida João Ramalho

Início da João Rmalho
No seminário sobre planejamento de cidades, realizado pela Prefeitura Municipal, em 2013, com vistas à elaboração da nova Lei de Zoneamento Urbano, aprendi que as vias mais largas são como as artérias do corpo humano. Elas levam o fluxo mais intenso, neste caso, levam todo o movimento de veículos, de motos e transeuntes, até as artérias menores, que vão distribuir e “irrigar” os bairros adjacentes.
Aprendi ainda que, nas artérias, devem se concentrar o comércio e a prestação de serviços, poupando estas áreas da construção de casas e prédios residenciais. Estes últimos devem se concentrar na terceira linha, depois das instalações dos serviços públicos em geral.
Para a produção destes artigos semanais sempre faço as “visitas de campo”, pois é assim que consigo sentir o clima da rua, observar pessoas e hábitos que são comuns àquele espaço. Cada bairro tem um ritmo, cada bairro tem sua música, cada bairro tem seu cheiro, e o conjunto de todos estes itens formam o que eu chamo do “clima do bairro”.
A João Ramalho tem início na rotatória do Kieza, onde está o grande mastro com a bandeira de Marília, seguindo calma sentido bairro, passando sob a rodovia SP 294, onde logo em seguida estão o Supermercado Amigão e o Posto Jardim Guarujá. Alguns dos leitores vão lembrar que, nesta mesma área, ficava a sede do clube social da Associação dos Motoristas da Alta Paulista.
Visitei a praça que fica em frente à instituição filantrópica Amelie Boudet. Seguindo as informações no local, seria a Praça Amelie Boudet. Mas não é. O Decreto Municipal 5.103, de março/ 86, dá a denominação de “Praça João Neves Camargo”. Tem boa variedade de plantas, um misto de jardim com pomar. Tem pé de manga, de caju, de pitanga, de romã, limão cravo e goiabeira, e tem também as Espirradeiras, Pata de Vaca, o Chorão, Quaresmeiras e outras espécies de flores. A praça está bem cuidada, bem iluminada, permitindo a presença das pessoas, com segurança, mesmo no período noturno.
Igreja Guadlupe
O belo prédio da igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, com janelas em forma de arcadas, é o cartão de visitas da Zona Sul, aliando a beleza da sua arquitetura com a do prédio onde se encontra instalado o Centro de Atendimento ao Trabalhador “Lázaro Ramos Novaes” - o Sesi de Marília. Este conjunto concentra, além da praça de esportes, da quadra coberta e do parque aquático, salas de aulas para cursos de qualificação profissional. Inaugurado em 1986 é modelo de conjunto de serviços voltados para a comunidade, reunindo em um mesmo local: a educação, a assistência social, o lazer, o atendimento à saúde do trabalhador, além de teatro com capacidade para 200 pessoas, local de grandes espetáculos, em plena sintonia com os melhores eventos da capital paulista.
Mas é da esquina com a Avenida Men de Sá em diante que a João Ramalho ganha um vigor de fazer inveja. Originalmente, era uma rua de residências populares, isto lá pelos idos dos anos 80, quando o bairro Nova Marília foi inaugurado. Uma parede quebrada aqui, um ajuste ali, a garagem que ganhou porta de Blindex... e pronto, começaram a nascer os pequenos comércios para atender a comunidade local. Geralmente, armarinhos e confecções, ou brechós, que após um período de experiência no comércio de usados decidiram partir para uma loja mais moderna e convidativa. Ainda hoje, tem muitas destas lojas por lá.
Mas tem também agências do Banco do Brasil, do Itaú, do Bradesco e da Caixa Econômica Federal, uma grande loja do Supermercado Kawakami, esta última associada a um pequeno conjunto de lojas e serviços, que acabou se tornando o ponto de encontro do bairro. Foi esta concentração de comércio e de famílias de trabalhadores que levou os bancos a decidir pela presença física na João Ramalho. Ditado popular é sábio: “se tem bancos, é porque corre dinheiro”, tanto que duas destas agências mencionadas fizeram questão de montar estruturas de atendimento nos mesmos padrões do principal centro comercial da cidade.
centro de negócios
Ao longo da via, contabilizei pizzarias, farmácias, lojas de materiais de construção, consultórios odontológicos, lojas de móveis, acessórios para veículos, postos de combustíveis, bares, garaparia, academias de ginástica e, salvo engano, sete igrejas, sendo estas de religiões diversas. E, já que estamos falando de empreendedorismo, chamou a atenção o fato de que uma destas igrejas, instalada em dois prédios anexos, oferece as instalações para festas de casamento, de aniversários, para encontros empresariais, convenções e eventos sociais em geral. A direção promoveu a união do útil ao agradável e otimizou a utilização do espaço, certamente, buscando o equilíbrio financeiro.
E, assim, vigorosa, a João Ramalho segue até a rotatória com a Durval de Menezes, caminho para o Sest-Senat, para o conjunto dos comerciários, e para a estrada velha para Nova Colúmbia, ou melhor,  Nova Colômbia, porque foi fundada pela família Colombo.
É nas calçadas, nas portas das lojas e nas mesinhas postas em frente aos bares, restaurantes e lanchonetes que vemos o retrato real da nossa gente; um povo feliz, que vive a vida, e mesmo que alguns tenham pouco ou nenhum dinheiro no bolso, eles expressam a felicidade no seu sentido filosófico mais simples. A vida pulsa nos bairros.
João Ramalho: Aventureiro navegante e explorador português, naufragou na costa da futura Capitania de São Vicente, hoje estado de São Paulo. Depois de se embrenhar nas matas, foi encontrado pela tribo dos Guaianases. Mais adiante na história, casou-se com Bartira, filha do cacique Tibiriçá, batizada Isabel Dias. O casamento foi realizado pelo padre Manuel da Nóbrega. Tiveram nove filhos. Mas conta a história que João Ramalho teve filhos também com outras índias, já que a cultura nativa assim o permitia, e também porque ele queria agradar os demais caciques e estabelecer boas relações. Diante dos relatos, vemos que o fenômeno da globalização não é coisa deste século.

Publicado no Jornal Diário de Marília, em 17/08/2014

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A Avenida Santo Antônio e o Marco Zero de Marília


Se pudéssemos voltar ao passado e participar do planejamento da cidade, um dos principais requisitos de acessibilidade e mobilidade seria o de que toda via longitudinal extensa, deveria ter, no mínimo, a mesma configuração da Avenida Santo Antônio. Seu traçado tem início na Rua Presidente Vargas, e seguia até o encontro com a Manoel Muller, logo abaixo da rotatória onde está a capela Maria Mãe de Deus. Porém, com a criação do Jardim Aquárius, a avenida se estendeu até a Rua Dr. Timo Bruno Beluce e figura entre as mais extensas da cidade.
Com muitos prédios residenciais instalados nas quadras iniciais, a avenida, que homenageia o santo padroeiro e os fundadores Antônio Pereira e Pereirinha, tem como seu maior ícone a Igreja Matriz de Santo Antônio. 
Construção imponente e de fundamental importância para história da cidade, a atual igreja substituiu a primeira capela erguida pelos pioneiros e fundadores do município, Antônio Pereira da Silva e seu filho José Pereira da Silva. A inauguração do santuário se deu em dezembro de 1924. Seguindo os registros históricos, a praça da igreja de Santo Antônio pode ser considerada o “Marco Zero” da cidade, pois foi a partir do espigão que surgiram os traçados das primeiras ruas.
Pereira e Pereirinha foram os responsáveis pela encomenda ao engenheiro Francisco Schmidt, que trabalhava para a Companhia Agrícola e Pecuária de Campos Novos, do “Plano Xadrez”, o primeiro plano de loteamento da história da cidade, com ruas de 12 metros de largura, quarteirões de 88 metros por 88 metros, divididos em 10 datas, sendo 8 de 22 por 33 metros, e 2 de 22 por 44 metros. Foi reservada uma quadra para a Igreja Santo Antônio, e o loteamento ganhou o nome de “Alto Cafezal”, em homenagem à exuberância dos cafezais plantados em áreas próximas desta região.
No quarteirão 700, ainda está em atividade a antiga "Creche Dona Nhanhã", instalada em Marília em 1949, por iniciativa de Da. Olívia Cândida de Almeida, viúva do Cel. Galdino Alfredo de Almeida, em homenagem ao marido falecido e proprietário da Fazenda Bonfim. No terreno de número 766, funcionou o 2º Grupo Escolar, e foi adquirido para ampliar as instalações da creche que passou a denominar-se "Lar da Criança", abrigando apenas menores do sexo feminino inicialmente. Faço um parêntese aqui para registrar a benemerência de cidadãos e cidadãs, que marcou a história da cidade até certo período, com doações e aquisições de áreas para a criação de entidades assistenciais que perduram até os dias atuais.
O Grupo Escolar Gabriel Monteiro da Silva é outro marco da avenida e, certamente, faz parte da história de muitos marilienses que tiveram a oportunidade de frequentar as aulas em suas dependências. É uma escola organizada, bonita, tem direção pedagógica competente e também é sede de votação nos pleitos eleitorais.
Seguindo no sentido crescente da numeração, encontramos um charmoso conjunto de casas de madeira no quarteirão 1.500. Muito bem conservadas, são o registro de uma época em que a as serrarias eram as principais fornecedoras de material de construção para a criação e instalação de novos bairros. Há modelos que vão dos mais simples, ou de "pouco acabamento", como eram chamados, até aquelas residências que têm adornos artísticos, com fachadas recortadas, pontas de vigas em forma de "peito de pomba" ou "cabeça de cavalo”, e as emendas de madeira que levam o nome de "mão amiga". Todos estes detalhes eram discutidos no momento de se elaborar o orçamento da futura morada.
Não deixe de observar os Manacás, em plena florada, na residência localizada ao lado direito, sentido centro-bairro, logo após a esquina com a Rua Dr. Joaquim de Abreu Sampaio Vidal. Um capricho de jardim. 
Na esquina da avenida com a Rua Benjamin Pereira de Souza, localiza-se o Departamento de Água e Esgoto de Marília - DAEM, onde estão os serviços de manutenção e controle da frota de veículos, de atendimento à solicitações de reparos e novas ligações de água e esgoto. No terreno, dois tanques subterrâneos de armazenamento de água potável, com capacidade de 4 milhões de litros, são alimentados pelo "Sistema Peixe".
vista interna do ginásio
Ao lado do DAEM, está o prédio da Delegacia Seccional de Polícia, e na baixada, próximo da escola Baltazar e do antigo CEASA, o vistoso prédio do novo mais novo ginásio de esportes de Marília.
Mais um fato curioso sobre a avenida: ao longo da via, são mais de 40 garagens de intermediação de compra e venda de veículos, sendo que alguns quarteirões concentram até seis empreendimentos deste segmento. É interessante notar como um determinado ramo de negócio acaba sendo atraído para uma mesma via e a transforma numa grande "feira de usados" no meio urbano. Considerando que cada garagem pode ter de 30 a 50 veículos, em média, temos uma noção do volume de negócios que movimentam na economia local. E vale comentar sobre a gíria, própria do ramo, que marca as conversas e negociações entre compradores e vendedores: "Arma de Fogo" - carro cheio de defeitos, velho; "Casamento" - carro que encalhou na venda, "Filezinho"; argumento muito utilizado para dizer que o negócio é dos bons; "Carro de professora", veículo com pouco uso, sugere boa procedência; "Mosca Branca", aquele que todo mundo quer; "Dar um talento ou carioca", ajeitar o veículo para venda, polir, cuidar dos detalhes, "Bem calçado", tem bom conjunto de pneus; e para a frequente pergunta: quantos quilômetros está o veículo? O vendedor responde - Com quantos você quer que ele esteja?
É por estas e por outras que a nossa cidade é um local muito especial para se viver e passear. Ruas e avenidas guardam histórias e personagens que dão sabor à vida. 

Ivan Evangelista Jr. é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília.
Publicado no Jornal Diário de Marília em 27/07/2014