quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O Freire, o cafezinho e o Tita.


O ritual era algo assim como sagrado. Sábado era dia de ir na agência levar o carro para dar aquela olhada e ver se tava tudo certo. Salvo engano o primeiro foi um Fusquinha na cor verde, aquele que tinha um arco enorme, formato de meia lua e com dois bandeirantes decorando o centro do volante.
O painel era inovador, tinha esguicho de pára-brisa que se apertava o meio do botão  e como mágica a água surgia no grande vidro da frente do carro para limpar as manchas da viagem. Do que eu mais gostava era o bauzinho que ficava atrás do banco traseiro de passageiros, onde eu cabia certinho e nas viagens tudo se transformava em uma grande e imaginária caverna, tal e qual meu neto faz hoje com as caixas de papelão que a mãe leva para casa para ele brincar.
Os parentes da minha mãe moravam em Olímpia, terra da laranja, e toda vez em que tinha viagem para lá o desafio era conseguir trazer para casa as famosas laranjas de Olímpia. Havia uma  tal de barreira fitossanitária que confiscava as laranjas todas vez em que meu pai transgredia a lei. Até que um dia eu dormi em cima do bauzinho do Fusquinha, justamente onde estavam escondidas as laranjas debaixo de uma sacola com roupas sujas.
Ao chegar ao posto fiscal o guarda pediu para os passageiros descerem para inspecionar o carro por dentro e ao me avistar dormindo tranquilamente sobre o baú ele disse: “não precisa acordar o menino, deixa ele dormir tranqüilo e desejo a vocês uma boa viagem de retorno para casa.” Foi assim que iniciei minha vida de contraventor da lei, com a complacência de um guarda rodoviário que sem querer deu a dica de ouro para as próximas empreitadas.  Acreditem; laranja contrabandeada tem outro sabor, ainda mais se for de Olímpia.
Voltando a agência de veículos as boas vindas quase sempre eram dadas pelo simpático Tita, hoje com loja de acessórios automotivos na baixada da Rua Cel Galdino. Tita sempre me foi uma figura simpática e também a pessoa que garantia que o serviço e as peças eram originais de fábrica. Depois vinha o xará Ivan, filho do dono, se juntar ao grupo e meu pai sempre dizia: agora ficou bom, são três Ivans juntos.
O café era servido por uma simpática senhora, sempre em xícaras impecavelmente brancas com a marca da concessionária impressa na cor azul, todas acomodadas em uma assadeira em banho-maria para melhor higienização. Ah o café, que café maravilhoso, que aroma; feito ali, na frente dos clientes e passado no coador de pano que exalava a bebida por todo o ambiente. Não tenho dúvidas em afirmar que o cafezinho do balcão era o melhor ponto de vendas da loja, sempre adoçado com um bom Cristal e muita conversa.
E o fusquinha do pai? Este tinha lugar especial marcado com listras no solo. Enquanto tudo isto acontecia, entre goles de cafezinho quente, risos, novos catálogos onde o Zé do Caixão já surgia como a mais nova opção de transporte para a família, um inspetor vestido em imponente avental branco ligava o motor do carro, levantava a tampa e se acocorava na traseira do veículo para ouvir a marcha lenta.
Vez ou outra tirava um chave de fendas do bolso e como se fosse instrumento cirúrgico da mais alta precisão ele girava o parafuso do carburador para dar aquele toque de mestre na marcha lenta.
Cumprido o ritual entregava a chave do veículo apertando AM mão do meu pai pela conservação e limpeza e o parecer de que tudo estava em perfeita em ordem: Parabéns o seu Fusca está impecável. Era o mesmo que receber a benção do Papa.
No final de todo este ritual surgia a figura responsável pela orquestra. O Senhor Francisco Freire, homem que meu pai admirava pela cordialidade, simpatia, gentileza e energia. Ele tinha brilha nos olhos, era rápido para arrematar um bom negócio, conhecia os clientes como poucos, dominava as técnicas de vendas e se pedisse outra xícara de café para o cliente o risco de uma troca de carro era iminente, mesmo que o atual ainda estivesse com baixa quilometragem.
Foi assim que ele conquistou meu pai e tantos outros clientes que foram fieis a Marca Wolksvagem por anos a fio; com sorrisos, elogios sinceros, uma xícara de boa prosa e atendimento da equipe sempre com muita atenção e comprometimento com os clientes.
No jornal de hoje (26/09/2018) vejo uma nota tímida de página interna que o Freire faleceu aos 95 anos de idade. A foto que ilustra a notícia mostra um senhor elegante, como sempre se mostrou, vestido de terno e gravata, cabelos já grisalhos e ainda com o mesmo olhar firme de quem encarou a vida de frente.
Merecia notícia de capa pelo legado que deixa na cidade e na história do comércio de veículos em Marília e região. E  também porque Freire, por muitos e muitos anos foi sobrenome de Wolksvagem.  
Em meu nome e do meu saudoso pai Ivan Evangelista, nossas condolências e abraço fraterno aos familiares enlutados.
Ivan Evangelista Jr, membro da Comissão de Registros Históricos de Marília e coordenador de cursos do IST/UNIVEM.

Um comentário:

  1. Foi o que pensei, quando li aquelas linhas frias do " notas de falecimento". Endosso e agradeço muito pelo seu histórico da importância da vida desse pioneiro que muito fez por Marília e talvez no final de sua longa existência, tenha colhido espinhos em vez de flores ,como em sua cadeira de rodas confidenciou a um amigo que o visitava há pouco mais um ano. Descanse em paz,sr Chiquinho Freire ! Obrigada por ter escolhido Marília para viver !

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