segunda-feira, 12 de março de 2012

Um dedo de prosa, um café e várias histórias



Fachada do Educandário Bento de Abreu onde
 raio destruiu ornamento na parte mais alta do prédio


Na esquina da Rio Branco com a Sampaio Vidal, sobre o telhado da antiga residência dos Montolar, armação de antena de rádio dos anos 60.

Rádio valvulado e ferramentas de trabalho diário
No bailado do rodamoinho, o prenúncio da mudança de tempo
A prosa na varanda seguia morna, no mesmo ritmo da água esquentando sobre a boca do fogão para mais tarde o café. O assunto, hora passava pela fase da lua boa para plantar milho e mandioca, hora sobre o capim na roça, que nesta época do ano, de chuva pouca e sol abundante, cresce viçoso e solta a sementeira, sem dó do lavrador já atarefado.
Um vento besta começou a soprar no terreiro de secar o café e as folhas secas entraram no bailado do rodamoinho que, geralmente, acompanha a brisa que anuncia uma mudança de tempo. Da ponta das árvores mais próximas do quintal, os Anus brancos são surpreendidos também pela corrente traiçoeira e saltam dos galhos num voo todo desengonçado, coisa de rabo muito comprido virando pra cima do corpo, apressados para encontrar um local onde possam se abrigar da chuva.
A carijó, toda cuidadosa com seus pintinhos, cacareja num tom parecido com a telegrafia, e eles entendem, vão saindo debaixo das saias do café, das moitas e montes de folha seca, onde ciscam os bichinhos preferidos, e correm pra mais perto da mãe. A cadela de cor quase cinza, de tetas sempre gordas porque tem uma cria atrás da outra, que descansava no cimento quentinho, de barriga para cima e olhos bem amiudados, sai da pasmaceira típica de cachorro vira lata, que mais late do que morde, e corre pra debaixo da mesa e das pernas do dono.
Todos estes sinais se juntam a um relâmpago rápido, seguido de forte estrondo que arrebenta no céu, e as nuvens vão virando umas sobre as outras, em cores escuras e disformes. Vem chuva forte por aí... "corre recolher uns paus de lenha", diz alguém lá na cozinha.
Outro relâmpago e um raio cheio de pontas cruza o céu rumo ao horizonte, segue mais um trovão e outro. Dona Joana, a dona da casa, já procura com os olhos ligeiros um canto para se esconder. É pânico de temporal, tem medo, muito medo mesmo, e isso vem desde criança quando perdeu a mãe, vitimada por uma descarga elétrica.
Ela nos conta que estavam todos na casa e o tempo virou pra chuva. Moravam na roça, lá no estado da Bahia, um lugar de poucas casas e muito chão batido. A faísca foi certeira, descarregou na ponta cumeeira e correu pelos paus do telhado, até descer pelo batente da porta, onde a mãe se recostava, sentada nos degraus da pequena escada. Ali ficou, foi fatal.
Casou-se com o Paulino e foi morar na região de Avencas, onde também naquela época ficava o bairro Catequese, ou Catiqueis, como era chamado pelos caboclos. Casa de taipa, chão batido e parede feita de casca de coqueiro do mato, completando a trama com barro vermelho alisado com as próprias mãos, depois uma caiação pra deixar mais bonita e afastar o bicho barbeiro.
Sem eletricidade, o rádio era tocado com aquelas pilhas enormes, muitas delas feitas pelo Sr. Aurélio, um curioso da eletrônica que, mais tarde, veio a ser funcionário da CPFL de Marília. As condições de recepção eram precárias e o conjunto exigia: além do rádio ABC Canarinho, A Voz De Ouro, o fio terra, geralmente feito de arame grosso, enrolado várias voltas em um lima de amolar enxada, velha e enferrujada, depois enfiado num buraco do lado de fora da parede e perto do local onde o rádio ia ser instalado. Um outro fio subia parede acima e atravessava o telhado, até alcançar a ponta de um outro arame, ou fio desencapado, estendido entre dois bambus, geralmente no cumprimento de 10 a 20 metros. Esta era a antena de rádio típica de sítio, também considerada a melhor arapuca para atrair raios e faíscas.
Nuvem preta dava sinal no horizonte e dona Joana corria cobrir o espelho da penteadeira com a toalha da mesa ou a colcha da cama, porque aprendeu desde criança que espelho também atrai raios. O mesmo se fazia com as tesouras de costura, que estavam sempre ali, ao alcance das mãos, mas nestas ocasiões ganhavam o lugar mais fundo das gavetas. Faca não ficava sobre a mesa da cozinha nem pensar. E quem tivesse lidando com metal, enxada, facão ou enxadão, que tratasse de largar rapidinho.
Voltando à cena da varanda, dona Joana serviu o café, que passou, com o coração apertado de medo, pelo coador de pano. Um gole esquenta a goela e seu Generoso entra na prosa contando que raio gosta é mesmo de Perobeira alta. “E tem mais viu”, dizia ele, “naquele tempo, eu vi o raio bater na ponta da Peróba e abrir a árvore no meio, até embaixo na raiz. Depois da chuva, a gente correu lá para ver se achava a ponta do raio no chão”.
- “Como assim Generoso?”
“Pois é. O povo daquele tempo dizia que quando o raio descarregava na árvore, podia procurar a ponta lá embaixo que virava uma pedra preta e comprida, parecida com uma cunha grande, isto sem falar do cheiro forte de enxofre que ficava no derredor.”
E fora esta, eu e você, amigo leitor, já ouvimos outras tantas boas histórias, de gente que morou em sítio ou fazenda e confirma tudo que aqui está contado, “tar e quar” o Guinete Grassi, leitor assíduo da coluna. Teve gente que já viu amigo cavar buraco feito Tatu Peba pra ver se encontrava a tal da pedra.
De minha parte, brinquei com eles: “nunca vi rastro de cobra nem couro de lobisomem, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.”
Povo bom de se conviver, prosa boa de se ter e café bom de se beber.
Ivan Evangelista Jr
Membro da Comissão de Registros Históricos de Marília e Chefe de Gabinete do Univem
Publicado no JornalDiário de Marília, edição de 11/03/12





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