sexta-feira, 17 de julho de 2015

Retratos de uma sociedade

Tenho certo receio de fazer estas incursões pelo campo da sociologia e da psicologia, pois sou ciente de que é preciso muito conhecimento para poder engendrar argumentações e comentários, sem cair no deslize das incoerências. Refiro-me a esta situação dos seres humanos que não conseguem viver na chamada sociedade organizada.
A cracolândia, na capital paulista, foi cenário recente de confronto que envolveu policiais, a guarda municipal, a população e os viciados, protagonistas de uma “nova” sociedade alternativa. Montam barracas improvisadas e, ali, passam o dia consumindo drogas, jogando conversa fora, “viajando” e vivendo na “terra do nunca”.
Para amenizar o impacto social, e também ambiental, devido ao lixo e ao odor fétido das necessidades básicas, feitas em locais inadequados, a prefeitura estabeleceu horários para lavar a calçada.
E olhem só que interessante. Eles, os alienados, assim chamados, levantam acampamento no horário estabelecido, aguardam a varrição e a lavagem e, depois, retornam com toda a tralha. Isto é sinal de que ainda resta um fio de esperança no caos, pois mesmo vivendo sob condições muito precárias aceitam a assepsia material para ter um mínimo de conforto.
Mas a tendência é só aumentar a população desses seres infelizes, neste caso, atraídos por um interesse comum, o de consumir drogas sem serem molestados. Como nos filmes futuristas, criaram um território neutro, uma zona franca, dentro da sociedade, supostamente organizada, onde são acolhidos para gerar mais lucros. Sim, sempre há os que ganham com a miséria humana, os que controlam o meio.
Toda vez que a polícia interfere neste ambiente surrealista, vira uma bagunça maior do que já está. O comando diz que tem que fazer alguma coisa para mostrar serviço, para dar uma resposta para a sociedade. Porém, diz aos seus comandados que tomem muito cuidado com a forma do fazer.
Se desandar a operação, não foi o comando quem mandou, o ônus fica por conta de quem estava lá, na ponta dos fatos. O problema é que conversa e conselhos, a curto prazo, não são eficazes.
Como moeda de mediação e troca, o comando oferece moradia, hotel pago e emprego, mais o acompanhamento da assistência social para que saiam desta condição de vulnerabilidade. Mas acaba sendo algo paliativo; os assistidos preferem as ruas, em vez alguns lençóis limpos e uns trocados por serviços prestados. Em pouco tempo, estão de volta.
O caso mais recente, do ator que interpretou o personagem Neguinho, no filme “Cidade de Deus”, mostra esta realidade. Foi descoberto como frequentador da cracolândia, vive numa luta constante contra a dependência química. Na entrevista que deu à Folha de São Paulo, disse: “Eles viraram minha família, porque não fui acolhido pela minha família de sangue”.
Aqui em Marília, nossa terra, Símbolo de Amor e Liberdade, não é diferente. Nossas cracolândias, por enquanto, estão restritas a algumas favelas ou pontos mais distantes da nossa vista. Estão mais próximas das biqueiras das drogas. Já tivemos uma ameaça, bem no centro da cidade, mais precisamente na antiga estação ferroviária, coibida a tempo, utilizando os caminhos permitidos pela lei, associados à limpeza e manutenção do local, o reforço na iluminação e o policiamento constante.
Mas estamos vivendo um outro movimento, os do sem teto, moradores de rua que se recusam a fazer parte de qualquer programa de reintegração social, como, por exemplo, o da Fumares – Fundação Mariliense de Recuperação. Eles não podem ser levados à força, não podem ser despachados para outras cidades, não podem ser presos, ao menos que cometam algum delito. Restam a conversa, o convencimento pela insistência da assistência.
São seres humanos que estabeleceram para si o mínimo do mínimo, a vida da unidade: um prato de comida ao dia, um corotinho de cachaça, um cobertor, geralmente fruto de doação da sociedade, e um lugar qualquer para dormir. Sem horários para cumprir, sem agenda, sem compromisso com nada e com ninguém, sem futuro, apenas o presente. É o tal do “Eu” profundo, tomando decisões que os levaram a optar por este tipo mísero de vida.
Ivan Evangelista Jr. é gestor de negócios com especialização em Marketing e Negócios Estratégicos pelo Univem. É chefe de gabinete e gerente de marketing da Fundação Eurípides/Univem, fotógrafo, articulista e pesquisador pela Comissão de Registros Históricos de Marília. Autor do primeiro Guia de Roteiros Turísticos de Marília.
Publicado na Revista D Marília, edição julho/agosto 2015

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